Monday, October 04, 2021

Três Exemplos da Saudade Chinesa de Li Changji

 Bom dia, leitores. Permitam-me apresentar um pequeno trabalho que escrevi em português há dois anos. Nessa altura, foi mais uma oportunidade de practicar o português escrito do que criar um trabalho académico, embora se fizesse mais pesquisas e análises rigorosas, pensaria em submetê-lo para algum jornal. Enfim, não fiz nada, e por isso agora estou a oferecer isso para vocês. Pode lê-lo também na minha página de academia.edu, onde tem um resumo em português e inglês.

DAS

 

TRÊS EXEMPLOS DA SAUDADE CHINESA DE LI CHANGJI

D.A. Smith

A saudade, este conceito de língua portuguesa frequentemente e erradamente descrito como intraduzível, tem análogos na poesia chinesa. Ou seja, a poesia da China tem formas de expressão sobre objetos de nostalgia e desejo semelhantes à saudade lusófona.  A dinastia Tang, considerada por muitos a idade de ouro de poesia na China, deu-nos o poeta 李賀 Li He (790-816), também conhecido pelo nome de cortesia 李長吉 Li Changji, que viveu uma vida amaldiçoado com doença e azar. Por várias razões a carreira na burocracia, a marca dos eruditos chineses, nunca concretizou, e Li, sempre de constituição fraca, voltou para a terra natal de Fuchang, na província de Henan, onde morreu aos 26 anos.

Dois dos poetas mais famosos da dinastia Tang, 李白 Li Bai e 杜甫 Du Fu, são respetivamente conhecidos como 詩仙, o “imortal de poesia,” e 詩聖, o “sábio de poesia.” No entanto, Li Changji é designado 詩鬼, o “fantasma de poesia,” por as suas esquisitas imagens e preocupações. Embora o apelido é bem aplicável, nos três poemas abaixos podemos ver não só alguns elementos fantásticos do poesia de Li, mas temas mais típicos  abrangidos pela saudade chinesa, nomeadamente os de viagem, velhice, e fracasso, seja pessoal ou profissional.

No âmbito do seu trabalho como funcionários, os literários chineses tinham de viajar para outras províncias, longe da terra natal e o capital. Apesar da sua breve carreira, Li Changji não foi excepção, e ele escreveu vários poemas sobre o tema de viajar. E com a viagem vem a saudade. Em “O Viajante,” Li apresenta-nos duas paisagens, uma real e outra  imaginária-histórica, na sobreposição de imagens tão comum na poesia chinesa.

客遊

悲滿千里心
日暖南山石

不謁承明廬
老作平原客

四時別家廟
三年去鄉國

旅歌屢彈鋏
歸問時裂帛

O Viajante

O coração cheio de tristeza por mil li;
o sol aquece as pedras de Nan Shan.

Não posso apresentar-me na cabana de Chengming;
quando for velho, serei hóspede do senhor de Pingyuan.

Quatro estações longe do templo ancestral,
três anos desde que saí da terra natal.

Canto frequentamente canções de viagem, batendo no punho da espada;
às vezes, numa tira de seda, mando mensagens dizendo que vou voltar.


Por um lado—o do real—vemos um viajante nas montanhas, triste e com saudades de casa; por outro lado, o do imaginário-histórico, o poeta, como se fosse um funcionário de outrora, se preocupa com a sua incapacidade de cumprir os seus deveres no corte da dinastia Han. Estes sentidos não são contraditórios mas sim complementares, o resultado de uma sensibilidade enraizada na história e literatura.

Os mil li, ou milhas chinesas, são provavelmente exagerados, se a montanha referida, 南山 Nan Shan, é uma da cordilheira 終南山 Zhongnanshan, (Frodsham, 1983) ou da 女几山 Nüji Shan (李長吉/吳企明, 2012), ambas relativamente pertos do capital 長安 Chang'an (hoje 西安 Xi'an); neste caso, a tristeza do poeta em ficar longe do capital é mais simbólico. Mas não precisa exatidão geográfica nem temporal o poeta de viajens: além de distância, Li Changji volta no tempo à dinastia Han para reforçar a profundidade das suas saudades. O 承明廬 Chengming Lu, ou Cabana de Chengming, foi o lugar onde esperavam os funcionários que queriam uma audiência com o imperador dos Han (李長吉/吳企明, 2012). Li Changji nunca alcançou uma posição tão alta na sua carreira, e aqui ele exprime claramente a resignação num contexto histórico. A referência ao “Senhor de Pingyuan” é mais uma expressão de saudade situada num contexto histórico: o dito senhor, Zhao Sheng 趙胜, foi estadista no período dos Reinos Combatentes, antes da dinastia Han, no estado de Zhao. O desejo do poeta para cumprir os deveres para um soberano, e ao mesmo tempo imaginar uma vida num outro estado (e época!), presumavelmente por falta de cumprimento e fracasso profissional, leva-nos a pensar que Li Changji era bem consciente das suas falhas, e pensava muito no que poderia ter sido, uma vida alternativa.

Seria fácil dizer que Li parece tirar o melhor das suas viagens, ou pelo menos distrair-se por cantar e pensar em voltar para casa, apesar da desilusão e muitos anos longe de terra natal, mas Frodsham assinala que “batendo no punho da espada” significa mais do que o poeta mantendo o ritmo. Feng Xuan 馮諼, um servo do Senhor de Mengchang 孟嘗君 —mais uma referência ao período dos Reinos Combatentes—expressou a insatisfação por cantar para a espada e bater no punho dela (Frodsham, 1983). Sem dúvida Li Changji conheceu esta história, e aqui ele usa-la para exprimir a saudade do viajante, entretanto dando o leitor uma imagem de alguém que talvez está mais contento com a sua sorte do que parece.

A vida maltrata o poeta numa outra maneira no poema “Balada de um Coração Ferido,” no qual Li Changji enfrenta a velhice e a solidão. Porém, aqui o poeta não funde o presente com o passado no grau que fez no outro poema, e em vez de pensar numa vida perdida parece aceitar, embora de má vontade, o seu destino.

傷心行

咽咽學楚吟
病骨傷幽素

秋姿白髮生
木葉啼風雨

燈青蘭膏歇
落照飛蛾舞

古壁生凝塵
羈魂夢中語

Balada de um Coração Ferido

Soluçando, estudando as canções de Chu
doente nos ossos, lamentando uma solidão despida.

Um rosto outonal — os cabelos todos brancos,
uma árvore de folhas que gritam no vento e na chuva.

A luz da lâmpada torna-se azul enquanto o óleo de orquídea se esgota,
no lusco-fusco esvoaçam e dançam as traças.

Nas antigas paredes acumula-se a poeira,
a alma errante fala dentro dos sonhos.


A colecção de poemas do período dos Reinos Combatentes conhecida como as 楚辭, as canções de Chu, era grande influência sobre Li, e faz sentido que ele pensasse nela, sozinho no estúdio, enfrentado pela doença e prematura velhice (lembra-se que Li morreu  aos 26 anos): como todo mundo, nos momentos difíceis ele procura qualquer alívio e significado que pode obter. A solidão e a doença imobilizam o poeta, que tem de conhecer a futilidade de reclamar; mas como a árvore a qual ele se compara, ele recusa de ficar em silêncio, pois é contra a sua natureza. A expressão da miséria não é um grito audível, mas sim um poema em que Li pode traçar a forma da sua saudade.

E é saudade, saudade chinesa, não só lamentação. Ao mesmo tempo que Li sofre amargamente no meio de um estúdio decadente—presumivelmente localizado na casa ancestral—ele faz-nos um quadro em que a decadência não é defeito mas sim a própria  coisa que permite o poeta entender e aceitar o seu sofrimento. Li, como o “fantasma de poesia,”  valoriza muito a dimensão estética de cenas sombrias como estas, e a decrepitude do estúdio reflete o estado do corpo e da alma do poeta. Esta combinação de angústia e apreciação estética dá origem a uma experiência que ultrapassa mera tristeza e, no âmbito poético, torna-se saudade.

Na “Canção de Afastar Aflições, escrita ao pé de Huashan,” Li tenta confrontar o seu fracasso profissional com reflexões na história, bem como o apoio do álcool e um bom conselho, dado por alguém que entende bem as vicissitudes da vida.

開愁歌華下作

秋風吹地百草乾
華容碧影生晚寒


我當二十不得意
一心愁謝如枯蘭

衣如飛鶉馬如狗
臨岐擊劍生銅吼


旗亭下馬解秋衣
請貰宜陽一壺酒

壺中喚天雲不開
白晝萬里閒淒迷

主人勸我養心骨
莫愛俗物相填豗


Canção de Afastar Aflições, escrita ao pé de Huashan

O vento de outono sopra nas ervas brancas e secas
Huashan parece que uma sombra azul-esverdeada, nascida do crepúsculo frio

Aos vinte anos, não atingi o meu objetivo
todo o coração triste, murcho como uma orquídea seca

Minha roupa como plumas de cordoniz, meu cavalo como um cão
chegando a um caminho bifurcado, bato na espada, produzindo um rugido de bronze

No pavilhão de bandeiras, desmonto do cavalo e tiro o manto de outono
na esperança de o empenhar para um jarro de vinho de Yiyang

Dentro do jarro, grito ao céu, mas não se afastam as nuvens
Na branca madrugada, mil li se estendem, frios e obscuros

O taberneiro me encoraja a nutrir o coração e os ossos
e não ressentir-me do clamor do mundo vulgar

Frodsham diz-nos que no 荀子 Xunzi, a antiga colectânea filosófica, há uma referência  a um erudito chamado 子夏 Zixia, que era tão pobre que a roupa parecia a plumagem de cordoniz (Frodsham, 1983) Li Changji, mil anos depois, comisera-se com ele. Procurando alívio de novo, Li está disposto a vender o manto, em pleno outono frio, para comprar vinho. Yiyang, de onde origina o desejado vinho, é o nome antigo do condado onde estava localizada a terra natal do poeta, e podemos ver no desejo dele para um produto familiar uma prova da importância de lugares específicos, especialmente a terra natal. A saudade ocidental também invoca lugares concretos—todo mundo conhece, por exemplo, a importância de Lisboa para o fado, a música que personifica a saudade na imaginação popular—assim como a saudade chinesa. Em ambos os casos, o concreto funde-se com o imaginário, produzindo um efeito fortamente visual, quase irreal, que é uma marca de saudade de qualquer tipo.

 Além das paisagens—mas sempre em relação a eles—as estações do ano desempenham um papel importante na poesia chinesa, com o outono sendo a estação de mudança, perda, e morte, sobrecarregando pessoas com 悲秋, a “tristeza do outono.” Li Changji refere-se à estação várias vezes na sua poesia, e nos exemplos aqui tratados temos um auto-retrato descrito em termos outonais (“Balada de um Coração Ferido”) e uma paisagem de outono, cheio de imagens de decadência natural e pessoal na “Canção de Afastar Aflições.” Neste último poema, o poeta eleva a melancolia e desolação de outono para o nível de saudade através da sobreposição de imagens visuais e sentimentos subtis, alguns dos quais refletem um desejo de libertar-se do mundo material. A “viagem” dentro do jarro de vinho ultrapassa um mero episódio de embriaguez e torna-se uma tentativa de afastar não só a melancolia do poeta, mas a saudade com que a paisagem outonal está carregado. Naturalmente, ele falha suficientemente nesta tarefa que o taberneiro lhe oferece concelhos intemporais sobre o comportamento perante um mundo cruel e grosseiro; tendo em conta a idade do poeta na hora da morte, e a produção contínua de poesia saudadosa até a morte, dir-se-ia que Li Changji não ouviu o dono da cantina.

Temas relacionados à saudade são numerosos na poesia chinesa, e a obra de Li Changji não é excepção. Mas Li, como vemos aqui, contribui para um aprofundamento do conceito pelo uso de imagens e ambientes fora do comum. Outros viajantes ou funcionários de carreira falhada, escrevendo sobre as suas tribulações, poderia fazer referências mais típicas do que Li, que revela em estranheza: falando não apenas de um tempo antigo, mas imaginando-se viajar daquela época para outra; olhando-se como uma árvore esquelética fustigada pelas tempestades; e vivendo numa casa em decadência, no meio de poeira e traças e assombrado por uma alma (魂 hun, que na filosofia chinesa é uma de duas almas, e que pode viajar fora do corpo) que interrompe os sonhos.

No poema “Sonho Oriental,” o poeta português Antero de Quental apresenta ao leitor imagens de uma ilha situada num Oriente mítico, onde o poeta é rei. Sem fazer comparações demasiadas profundas, podemos pensar nisso como análogo ocidental da saudade chinesa de Li Changji. Para Quental, o Oriente simboliza uma vida livre de dores e angústia; Li, que vive no Oriente concreto, idealiza o passado pelas mesmas razões. Para Li, viajar é uma fonte de descontentamento; Quental viaja de bom vontade para a sua ilha imaginária. E o Oriente de Quental está cheio de luxo, enquanto que Li, escrevendo de um estúdio lúgubre, não pensa num mundo imaginário mas fica, mesmo deleita, na melancolia de realidade. Ambos os poetas têm a própria saudade, mas aqui podemos ver que a saudade de Li fica firmamente enraizado no real, apesar de sua reputação pela estranheza.

Este combinação do real e do imaginário ou (im)possível faz parte da saudade, elevando-a além de tristeza ou nostalgia. Estes três poemas de Li Changji representam algumas facetas da saudade como é manifestado não só na poesia chinesa em geral, mas na obra de um dos mais idiossincráticos poetas da dinastia Tang. A poesia de Li mostra-nos a maneira como um sentimento como a saudade pode ser expressado em formas estranhas e desconhecidas, mesmo num meio tipicamente visto como regulamentado e fortamente dependente nas formas e temas poéticas antigas. E assim é ampliado a nossa entendimento da saudade, além de uma emoção ligada somente à língua e cultura portuguesas. Pois se Li Changji pode passar pelos rigores de viagem, as derrotas profissionais, e a sombria realidade de envelhecer, e expremir na sua poesia sentimentos quase idênticos à saudade ocidental que tais desafios da vida incutiu na sua alma, devemos reconhecer que há na poesia da China a saudade, e que o Fantasma de Poesia é uma das vozes dela.


Referências Bibliográficas

Frodsham, J.D. Goddesses, Ghosts, and Demons: The Collected Poems of Li He (Li Changji, 790-816). San Francisco; North Point Press, 1983.

李賀 (autor) e 吳企明 (anotações). 李長吉歌詩編年箋注. Beijing; 中華書局 Zhonghua Shuju, 2012.




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